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Demo Dungeon Dungeoning: Extreme Dungeon

Sandman e o inconsciente coletivo - Análise breve sobre a obra e as mensagens

Falar de Sandman, a obra que primeiro lança Neil Gaiman como um dos autores mais promissores (na época) e mais marcantes da literatura fantástica (hoje) é falar de um compilado maior do que aparenta.

O quadrinho acompanha Morpheus, o Sonho, encarnação e personificação dos sonhos, e suas aventuras ou reflexões pelos mundos e dimensões que compõem de forma obscura o multiverso da DC Comics.

Mais do que uma obra sobre um personagem divino e seus poderes, Sandaman retrata o que há de mais humano e cotidiano à nós, dos problemas que o personagem tem com os irmãos aos dilemas que enfrenta como senhor supremo do Sonhar, o reino e dimensão que habita e coordena (e cuja existência está diretamente relacionada ao personagem).

Os sonhos, entendidos como evidência da consciência coletiva ou interpretação das informações recentes do cérebro, dependendo da corrente seguida, sempre foram alvos de curiosidade. O que se passa e se interpreta nos momentos em que estamos adormecidos tem atiçado a curiosidade de artistas ao longo dos séculos, sendo o Surrealismo a provável síntese dos sentimentos mistos que os mistérios do inconsciente despertavam nas pessoas da época e ainda hoje despertam, de certa forma.

As histórias de Neil Gaiman, sempre em sagas curtas, possui histórias que se conectam pouco a pouco em tramas maiores, por fim colapsando na última aventura (da serialização original dos anos 80) com os personagens até então apresentados participando de forma direta ou indireta para retratar aquilo que se passou até então. 

O arco final da saga original do quadrinho é uma forma de retomar todas aquelas aventuras dos 73 capítulos anteriores (Sandman tem 75 capítulos, mas encerra a saga oficialmente no 74°, o 75° é uma espécie de bônus com Shakespeare).

Morpheus é um espelho da realidade. Tudo o que se passa no reino do Sonhar é um reflexo dos bilhões de sonhos individuais que compõem o lugar e juntos criam uma unidade. 

De certa forma, ao reunir referências das mais diversas mitologias do mundo (egípcia, africana, nórdica, japonesa, etc), o que Neil Gaiman faz é um apanhado de culturas unidas por um motivo semelhante; em uma passagem específica da história, durante a saga da Estação das Brumas, considerada por muitos como uma das melhores sagas de Sandman, o próprio Morpheus diz que não pode ser derrotado pelos deuses, pois esses são criados dentro do Sonhar, e sem o reino dos sonhos, as divindades não poderiam vir a ser quem são. 

Modelo similar de pensamento é apresentado em Deuses Americanos, a novela de Neil Gaiman que se tornou sucesso de vendas e foi recentemente transformada em série pela Amazon Prime Video.

A noção de inconsciente coletivo bem se aplica ao universo de Sandman, pois lá todos compartilham da ficcional dimensão dos sonhos, inclusive sofrendo efeitos positivos ou negativos sob as entidades e situações do Sonhar. 

A primeira saga de Sandman retrata a busca de Morpheus por seus objetos de poder após ser aprisionado por quase 80 anos em uma cúpula que limitava sua presença por um grupo de ocultistas. O período retratado representa do final da Primeira Guerra aos anos 80, uma época marcada por um pessimismo extremo derivado dos terríveis efeitos das guerras em larga escala e das terríveis decisões dos poderes políticos de ambos os lados da Guerra Fria. 

Com o retorno de Morpheus ao Sonhar, as pessoas puderam voltar a ter esperança e noites tranquilas, de maneira indireta, evidenciada por Gaiman, a mensagem que fica é: os anos 80 são um retorno à esperança.

Um dos maiores talentos do roteirista é essa capacidade de escrita nas entrelinhas que fala do sobrenatural e do humano com tanta delicadeza que ele mesmo parece pertencer ao mundo de Morpheus (há, inclusive, uma biblioteca no Sonhar feita de todos os livros nunca escritos). 

Sandman é mais do que uma obra sobre seres divinos e suas brigas, é sobre o lugar de cada um no mundo, sobre atrocidades, identidade, sobre a busca das pessoas por um lugar de prazer ou felicidade, mesmo que esse local seja um mundo fictício criado em seus sonhos (como é o caso de Barbie, uma jovem que tem uma das sagas mais tristes enquanto enfrenta o Cuco na serialização Um Jogo de Você).

O caso que melhor representa a habilidade de Gaiman representar o que nos é humano está na história Vidas Breves. De maneira resumida, após ser rejeitado por uma amante, procurando se distrair, Morpheus acompanha a irmã, Delírio, em busca do sétimo irmão, Destruição, desaparecido por séculos depois de uma discussão em família. 

A história segue o par por várias pistas, até que por fim Morpheus decide visitar o filho, Orpheus, morto e ao mesmo tempo vivo como uma cabeça falante em um santuário na Grécia. Depois de falar com o filho e prometer acabar com a condição em que vivia, Morpheus e Delírio se encontram com Destruição, que estava em ilha próxima do sobrinho, vivendo com um cachorro falante, enquanto buscava ser um artista.

O grande dilema de Destruição estava em sua própria condição e natureza. Sendo um agente de extermínio, a síntese da Destruição no universo, as atividades que exigem criação apresentavam um grande desafio para o ser. 

Ao ser encontrado pelos irmãos, poder conversar com Delírio e se mostrar firme em sua decisão de não voltar a cumprir seu dever como Destruição, pois, em suas palavras “as coisas andaram bem sem minha presença”, o irmão mais querido dentre os Eternos desaparece nas estrelas, indo para outro recanto, buscando novas aventuras. 

Delírio parte dali com seu novo amigo, o cachorro de Destruição, que fica para trás como um presente. Morpheus volta para casa com a cabeça mais desanuviada, não sem antes matar o filho, Orpheus, dando a ele um descanso final como parte do trato que fizeram.

Toda a aventura é, na verdade, um grande drama familiar, ou uma aventura pessoal, um dilema. Resumindo o roteiro, temos algo inerentemente humano, com o qual o leitor acaba por se identificar. O mundo e a cultura são grandes quadros em branco que as experiências pessoais das bilhões de pessoas pintam. 

Sandman é a obra que melhor seleciona recortes dessa grande realização conjunta para, em um espaço só seu, criar algo novo com o qual todos podem se identificar. Afinal, todos nós somos súditos no reino de Morpheus.

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