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Eu nunca tinha visto Cowboy Bebop até entrar no catálogo da Netflix. A história é um desses marcos culturais que todo mundo ouve falar vez ou outra nas rodas de conversa, mas que até ter esse acesse facilitado pelas megacorporações de entretenimento sem criatividade para criar propriedade intelectual nova, na necessidade de reaproveitar o que já funcionou uma vez e pode vender de novo, apenas os dedicados e capazes de piratear tinham acesso.
A frase acima ficou enorme. Eu tenho esse problema com minhas introduções. Vamos ao que interessa.
Cowboy Bebop é, em resumo, a história de Spike Spiegel, um cowboy - caçador de recompensas - que atua no nosso sistema solar atrás de criminosos e gente da pior espécie. Ao lado dele, o piloto e dono da nave Bebop, Jet, um ex-policial que atuava em Europa e que abandonou a corporação depois de alguns anos e eventos em seu passado.
Depois, junta-se à dupla a criminosa Faye Valentine, gatuna que roda o sistema solar atrás de dinheiro fácil, o cachorro Ein e a hacker andrógina e meio maluca Edward (sim, Edward, mas nem o pai dela sabe se é menina de fato).
Juntos, o grupo vaga pelo sistema solar atrás de recompensas e aventuras enquanto são perseguidos vez ou outra pelo passado indefectível que se avoluma sobre eles dia após dia.
Existem algumas coisas que já podem ser ditas de cara aqui: a trilha sonora é impecável, a animação é excelente (em especial para a época) e a direção de arte é algo especial que mistura western, sci-fi e noir.
Mas eu não quero marretar nisso. Vamos ao que eu sei: roteiro.
O enredo de Cowboy Bebop
Cowboy Bebop é uma história sobre passado, sobre memórias e sobre solidão. Você tem isso em todos os personagens, e a maneira como o roteiro amarra as relações entre eles e a destaca os dilemas pessoais chamou minha atenção.
Mas essa construção não é óbvia. Longe disso, Cowboy Bebop toma todos os seus 26 episódios para mostrar um mundo (ou sistema) distópico e rico de personagens em decadência. O formato de contratos que Spike e Jet pegam, as caçadas aos criminosos, ocorrem como episódios pontuais de "monstro da semana" tão comuns na televisão estadunidense, mas aqui servem para espaçar a jornada dos protagonistas em mais dias, expondo diferentes traços de personalidade.
Todos os habitantes da Bebop (talvez com exceção de Edward) são trágicos e fogem do heroísmo tradicional. Eles matam, roubam quando é necessário, chantageiam e fumam maços e maços e maços de cigarro em naves fechadas (o maior crime da série para quem tem rinite como eu).
A saga de Spike, por exemplo, ocorre em 4 episódios pontuais da série. Jet tem dois episódios dedicados ao seu passado. Faye tem também seus três episódios (além da sua apresentação) e, apesar de sempre estar correndo do grupo e frequentemente ter esse elemento inserido no roteiro, a parte que a toca fica aí nessas aventuras dedicadas a desvendar seu passado. Edward tem ainda menos episódios voltados para si (apresentação, o maravilhoso episódio dos cogumelos e um sobre seu pai - que é também sua despedida).
Outro fator importante aqui, essa é uma animação de 1997. Então, mesmo que você ainda não tenha visto, fica o aviso de spoilers abaixo (vou fazer um artigo criticando a cultura de ódio aos spoilers eventualmente).
O passado de Spike Spiegel
Spike era um membro da máfia que se apaixonou pela mulher de seu amigo Vicious. Ele planeja um último serviço e tenta sair da organização simulando a própria morte para levar consigo Júlia, sua amada. Mas a mulher o trai e fica ao lado de Vicious - apenas para decidir não matar Spike e também precisar fugir. Vicious continua na organização e tenta chegar ao topo. Ele falha, depois consegue, e a partir daí Spike precisa voltar para derrotar seu antigo amigo-inimigo jurado.
Spike é incapaz de esquecer Júlia. A história começa com o cowboy dizendo "Eu já morri uma vez". Com essa premissa, avançamos pela narrativa com um homem que se sustenta mais como um espectro, uma semi-forma mantida apenas sob o juramento de vingança e a busca por aquela que outrora foi o motivo de sua morte.
Essa inefabilidade sombria sobrecarrega Spike. Ele é um homem gentil dentro de suas limitações que se afasta de maneira automática das pessoas, mas que em verdade não quer dizer realmente isso.
No segundo episódio, o protagonista afirma que odeia três coisas: Mulheres, crianças e animais. Dessas três coisas podemos tirar: das mulheres o amor romântico, a parceria; das crianças a família, paternidade; dos animais a obediência, a fidelidade. Esses três laços são intensos, verdadeiros. Duram mais que as missões de caça aos criminosos, pesam o peito.
A determinação com que Spike enfrenta Vicious é completamente diferente da obrigação desinteressada em ir atrás de dinheiro nos trabalhos que Jet arruma. O único objetivo do Spike é sobreviver para encontrar Júlia e derrotar seu inimigo. Por fim, a conclusão da série amarra aquilo que já é esperado. Spike é um homem que já morreu uma vez e tem dois olhos distintos, um deles olha para o presente e o outro vê apenas o passado. Preso a esse destino, quando todas as peças se chocam, tem apenas um fim.
O passado de Faye Valentine
A Faye é a personagem mais interessante da série, pra mim. O Spike é bacana e é o protagonista, mas a Faye trabalha de uma forma distinta os elementos de passado e memória.
Para começar, ela não tem memória. Faye foi descongelada em uma clínica e descobriu que devia 300 milhões de créditos pelo processo. Ela sofreu um acidente e, ao acordar, não reteve as memórias de sua vida prévia. Vinda do ano de 2022, antes do acidente com o portal na Lua (uma história muito longa pra colocar nesse artigo), a Faye vive anacrônica em um mundo que não quis.
Essencialmente, ela precisa lidar com essa segunda vida dada e a penalidade financeira por ser permitida existir novamente. Mas por mais que se aproveite da situação para ter sua segunda chance, ela também tem que lidar com as agências de cobrança e sua dívida - tanto monetária quanto consigo mesma. <esse final de frase ficou feio>
Aos poucos, Faye vai em busca da própria memória e descobre trechos de si. O homem que a despertou e jurou ajudá-la - fazendo-a se apaixonar em um momento de vulnerabilidade - era na verdade um criminoso pequeno e patético. Uma fita entregue de maneira misteriosa contém pequenos trechos de sua vida filmados por si - e despertam lentamente detalhes da vida passada. Faye passa a viver duas vidas - sua nova existência a bordo do Bebop e em um mundo futurista e sua vida original, perdida e então recuperada através de uma mídia e fragmentos de imagens dentro de si.
A diferença entre Faye e Spike é que a mulher ainda luta com essas duas existências dentro de si. Se Spike morreu uma vez e agora persiste como um espectro obstinado, Faye tenta fazer juízo sobre como existir a partir dessa nova percepção. O que seria pior para ela: viver sem memórias de quem era até aquele momento, solta em um universo sem laços, ou recuperar suas lembranças e saber tudo que perdeu até então?
O passado de Jet Black
O Jet é o personagem que tem o passado mais bem resolvido dentre os três. Não que a vida dele seja simples, mas o homem passa por um arco mais simples e sólido. Talvez isso seja proposital. Jet é o contraponto dos outros personagens, apesar das marcas do passado (incluindo um braço arrancado e uma ex-mulher com namorado criminoso), ele ainda se mantém particularmente otimista e perseverante.
Jet também é quem mais abraça os outros membros do Bebop: primeiro Spike, depois Ein (o cachorro, que vai ser pouco mencionado aqui), Faye e Edward. Ele atua como o pai do grupo, a razão em contraponto ao impulso destrutivo de Spike e Faye.
Primeiro, Jet precisa encarar seu passado na forma da ex-mulher que o abandonou um dia por se sentir privada da capacidade de tomar as próprias decisões. Na época, o homem era um policial e vivia uma rotina atribulada. Ao encarar esse elemento do passado: a maneira como a relação andava e o fantasma da perda repentina da esposa, Jet vê mais detalhes sobre si sendo revelados: esse lado "mandão" ainda persiste em partes - o apelido do homem na polícia era O Cão Negro que mordia e não largava seus objetivos.
Saindo da relação amorosa perdida, a obstinação de Jet em seguir com seus planos é vista em diversos outros episódios. Ele tem a maior fibra do bando e é o mais inflexível em muitos aspectos.
Mas há também o episódio em que finalmente se revela como ele perdeu o braço, e somos apresentados a um lado mais sombrio desse orgulho e dessa determinação: Jet está disposto a acertar as contas com o sujeito que arrancou seu braço, um assassino de um grupo criminoso secreto que começou uma rebelião em uma nave de transporte penal.
Nesse episódio, vemos como essa determinação é um fator de risco. Jet leva essa perseguição até o extremo, descobre quem realmente o atingiu na noite fatídica e volta para casa todo desgrenhado.
De maneira similar, Spike é determinado em encontrar Júlia, mas sua obstinação tem um viés mais sombrio, ele é um monomaníaco sem controle - e no fim, de fato, ninguém pode pará-lo.
Concluindo meus pensamentos
Cowboy Bebop é muito bom, mas não é perfeito. A série tem os defeitos de sua época e de sua mídia (a hipersexualização da Faye, por exemplo). E outro aspecto que ainda não fui capaz de analisar completamente é a presenta de Edward na série.
A hacker surge em um episódio e faz suas aparições esporádicas, mais como um alívio cômico para quebrar a seriedade e a melancolia dos outros personagens que para constituir aspecto relevante de roteiro em si.
Contudo, no seu episódio de despedida (o antepenúltimo episódio da série), temos o efeito de canário de mina.
Para quem não sabe, mineradores normalmente levam os canários para dentro dos túneis porque, caso haja vazamento de gás letal e sem cheiro, o animal é o primeiro a morrer e avisa os humanos.
Nesse episódios, Edward reencontra o pai enquanto ajuda Faye a recuperar a própria memória. Os enredos pessoais vão se cruzando e, por fim, Faye recupera as memórias e decide partir. Após alguns momentos, sem dizer nada, Edward também recolhe suas coisas e vai embora, vagando pela Terra destruída pelos meteoritos em queda constante desde o acidente com o portal na Lua. De quebra, Ed ainda leva o cachorro Ein consigo.
No final do episódio, Spike e Jet são deixados sozinhos à mesa de jantar com a dezena de ovos que o pai de Ed deixou com eles. Sem falar nada, os homens comem as próprias refeições sozinhos e depois comem os ovos nos pratos deixados de lado.
Há um sentimento profundo de solidão ali, de abandono, esse é o aspecto mais interessante da série. As pessoas estão eternamente distantes em Cowboy Bebop, seja pelo aspecto físico do espaço vasto em si seja pelas muralhas construídas pela miséria, crime, violência, vícios e outras obsessões (quase a música do BK - Amores, Vícios e Obsessões, mas não tem muito a ver aqui).
O espaço como elemento de distanciamento humano já foi usado em diferentes histórias. No Alien de Ridley Scott, o conceito de que "no espaço ninguém vai te ouvir gritar" é usado como alegoria para o terror no isolamento supremo. Em Cowboy Bebop, o cenário serve para mostrar essas personagens distantes e frias, isoladas em si e sem capacidade de construir laços sinceros. A todo momento a trupe do Bebop briga e se afasta, representando uma pantomima para esconder o que realmente acham. A direção da série, nesse aspecto, é fenomenal, é possível ver na expressão das animações as reações contidas de cada um, os sentimentos reprimidos para evitar novas dores.
Cowboy Bebop realmente é um trabalho a parte. A série faz questão de colocar isso nas intervenções para comercial: "The work which will become a new genre", e o gênio por trás da obra, Shichiniro Watanabe, soube mesclar bem todos os elementos da produção para ressaltar esses valores. No fim, tudo converge para esse mundo estranho e ao mesmo tempo familiar de cowboys espaciais atrás de recompensas, vínculos e uma segunda morte.
See you, space cowboy.